sexta-feira, 1 de junho de 2012

* PRÓLOGO

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O realismo fantástico na literatura e sua manifestação na América Latina

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Enviado por: clairtonlopes


Grosso modo, o chamado Realismo Fantástico (ou “mágico”, ou ainda “maravilhoso”) latino-americano corresponde ao boom, hoje catalogado, refletido e até recusado, que a literatura dessa região viveu no começo da segunda metade do século XX. Muito embora a maioria de seus autores já tenha morrido, alguns ainda produzem ativamente, o que dificulta um pouco a periodização. O movimento, porém, começou a ser questionado na última década do final do século passado e hoje, no mais das vezes, parece ter caído em descrédito, e recebe críticas tão animadas e violentas quanto imaturas de novos autores, interessados na verdade em ocupar o espaço que seria antes de nomes como Alejo Carpentiei Jorge Luis Borges, J. M. Arguedas e Julio Cortázar, entre outros.
Como toda classificação, essa também é artificial e reúne autores muito díspares e características bastante diferentes. Creio, porém, que melhor do que criticar com intenções demolidoras os escritores que teriam feito parte do grupo, de resto quase sempre brilhantes, talvez seja mais produtivo observar a especificidade dos conceitos e, em uma operação criativa de reflexão, repor os lugares para tentar estimar o que pode ser interessante em um conjunto de livros que, de um jeito ou de outro, chamou atenção do mundo inteiro.
Minha pretensão é apenas fazer um esboço de ensaio. Muito resumidamente, portanto, listo algumas das principais características do Realismo Fantástico latino-americano, tais como foram estimadas pela crítica: a) distorção do tempo cronológico, fazendo-o ir e vir, obedecendo mais a critérios cíclicos do que lineares; b) eventos mágicos, sobrenaturais ou no mínimo bastante estranhos terminam descritos com naturalidade, como se fizessem parte do cotidiano; c) utilização de personagens exóticas, desterritorializadas ou em situação de fragilidade, o que combina com a intenção política que parte grande desses autores assumiu; d) adoção de espaços geográficos muitas vezes afastados dos grandes centros urbanos.
Em primeiro lugar, vale ressaltar que o conceito de literatura fantástica é antigo e aparece já bem antes do chamado boom. Guy de Maupassant, por exemplo, seria um típico autor fantástico (sem trocadilho), bem como Edgar Alan Poe. Até Franz Kafka já recebeu o qualificativo, muito embora sua fortuna crítica, secundada por nomes como T. Adorno e Walter Benjamin tenha afastado-o dessa escola. A conclusão é que o conceito nunca foi muito bem resolvido e, talvez, sua utilização revele mais questões ideológicas do que propriamente um mero uso de ferramenta de análise crítica. Mesmo elas, no fundo, não são apenas técnicas.
Minha hipótese é a de que o chamado Realismo Fantástico nada mais é do que a leitura particular (e, portanto, muito variável conforme a realidade do autor) da alta modernidade literária que vinha se desenvolvendo um pouco antes na Europa e nos Estados Unidos. O conceito de tempo, por exemplo, já tinha perdido o aspecto linear na obra de Virgínia Woolf (enfim, exatamente linear ele quase nunca foi na arte em geral...), que o torna bastante elástico, por exemplo, em Orlando. William Faulkner também já tinha abolido qualquer noção cronológica, sem deixar margem, porém, para que alguém o lesse como “mágico”, imagina só...
Acontecimentos estranhos que se tornam banais e são descritos com muita naturalidade estão no centro da obra de Franz Kafka. Uma autora como Flanery O’Connor, ainda, também os adota com toda tranqüilidade. O próprio Samuel Beckett, no imediato pós-guerra, usa quase que exclusivamente situações bizarras para compor suas tramas. Com exceção do caso de Kafka, aqui também ninguém levou a sério a idéia de qualificar esses autores de “literatura fantástica”.
Esses mesmos nomes servem de ilustração para a disposição dos autores do alto Modernismo em utilizar personagens exóticas e maneiras muito particulares de se expressar. Vale lembrar que parte grande dos recursos utilizados por Guimarães Rosa, por exemplo, já estão no projeto literário de James Joyce. E normal e isso não reduz em nada a maestria do brasileiro Ao contrário, demonstra seu grau de consciência estética.
A escolha de espaços geográficos diferentes dos centros urbanos é o que mais diferencia o “Realismo Fantástico” latino-americano dos grandes autores do Modernismo europeu. De fato, James Joyce, Virgínia Woolf e Marcel Proust são escritores que envolvem parte grande de suas tramas nas cidades maiores. Ainda assim, houve um desdobramento da modernidade em espaços ficcionais mais afastados.
“O Realismo Fantástico” na América Latina estão nos grandes escritores da primeira metade do século XX. García Márquez, Arguedas e todos os outros são unicamente a manifestação local da modernidade que começou na Europa e se desdobrou nos Estados Unidos, na América Latina, na Rússia, com um pouco de relativização, e hoje, curiosamente, ainda é praticada em algumas outras regiões, como por exemplo, na África de língua portuguesa.
Se não há diferença, porém, por que então o termo continua, é verdade que com mais reservas, sendo levado a sério? Creio tratar-se mais de um defeito da crítica do que propriamente de algo que diga respeito ao projeto dos autores. Na América Latina (incluindo direitinho o Brasil), a crítica costuma ressaltar exclusivamente o que os autores trariam de local, ou regional ou, a palavra varia mas o conceito é o mesmo, nacional. Nenhum problema, a princípio, quanto a isso: todos os escritores manifestam uma questão que pode, e deve ser observada a partir de um lugar bem definido.
No entanto, a ênfase nesse aspecto é tão grande que a tradição literária, vista como algo bem mais amplo, fica de lado. E como se os nossos melhores escritores nem lessem nada e muito menos produzissem respostas conseqüentes às melhores obras que os antecederam. Alguns autores notáveis, caso de García Márquez, são simplesmente desvalorizados enquanto outros, como Guimarães Rosa, são lidos segundo uma espécie de chavão que serve para tudo e, portanto, não diz nada: “regionalismo universal”...  Mesmo que tendo evidentes conexões com a história brasileira, Rosa está dialogando diretamente com James Joyce. Nós e toda a América Latina podemos nos colocar nos nossos momentos mais altos, ao lado da melhor literatura do século XX.
Autores como ele e Jorge Luis Borges (outro que teve o desagradável azar de abrir a boca para falar bobagem durante a velhice) talvez tenham cometido alguns erros de análise política. Ainda assim, ambos são revolucionários porque trouxeram o que havia de melhor para uma realidade no mais das vezes atrasada — atitude típica de um pensamento de esquerda. E, junto com outros, moldaram uma literatura que trazia, de frente, todas as grandes questões estéticas e ideológicas para o nosso continente enquanto produziam obras que sustentam comparações, sem se diminuir, com James Joyce, Virgínia Woolf, Franz Kafka e William Faulkner, demonstrando que podíamos ser atrasados em muita coisa, mas em literatura é que não éramos, muito embora talvez tenhamos ficado.

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