sexta-feira, 1 de junho de 2012

FINADOS ROSEANO

*

João de Guimarães Rosa
 


           
            Dois de novembro, 1928. Pouco mais das seis da manhã, dona Maria Francisca bate à porta do quarto do filho.

         - Dormindo ainda, Joãozito.

         - Estava.

         - Pois então, levante logo. O café já está na mesa. No mais, eu e seu pai já estamos quase prontos para a viagem.

         - Uai, seu Florduardo Pinto resolveu ir?

         - Sua irmã também.

         - Vou já.

         - Então arruma logo. Você quem vai guiando o Fordinho, ouviu?

         - Eba!

         Depois de um banho para despertar bem os olhos, João Guimarães senta-se à mesa de café.

         - Cadê o pai?

         - Acabando de ajeitar os maços de flores no carro. Colheu tudo que podia no jardim e no quintal para enfeitar os túmulos da família em Cordisburgo e Curvelo. Sabe como ele é.

         - Claro.

         Pausa. Dona Francisca:

         - Não precisa se afobar. Mas, é melhor sair cedo para gente não pegar chuva na estrada. Todo finado chove, não é mesmo?

         O rapaz levanta os olhos para a janela da cozinha, caçoando:

         - Com esse carão fechado, o céu anda mesmo para lacrimejar a qualquer momento. Chuva na estrada é atoleiro certo, retarda o tempo.

         - Mesmo assim, quero ver a prima Eliza em Sete Lagoas. Fiz para ela uma forma de broa de fubá. Eliza gosta de mais da minha receita.

         - Sim, senhora.

         - Como no trecho está Araçaí, eu levo para a Geraldina também. A comadre deve estar ainda bastante inconformada com a morte do menino perto de fazer 16 anos. É o primeiro ano que visita o filho no cemitério. Só Deus quem sabe o que ela passou!

         - Qual a causa da morte, mãe?

- Desde pequeno sofria de sopro no coração. No início do ano, morreu assim de repente. O órgão parou. Ai, que pena!

- Acontece.

- Fazer o quê? Conformar.  Deus quis assim, ‘né?

- Não sei. Mas sei que cada instante em que a gente vive, pode ser o instante da morte.

- Nosso Pai Eterno sabe o que faz. Às vezes escreve certo por linhas tortas.

- Às vezes ele dá um cochilo.

- Vire essa boca para lá, Joãzito. Temos é que rezar muito. Muito, filho. Creio em Deus, Pai todo poderoso, criador do Céu e da Terra.

         Pausa. Depois de engolir o último gole de café, Joãozito fala em tom de brincadeira:

         - Mãe, a gente morre é para provar que viveu. Melhor dizendo, a gente não morre, se encanta.

         Com um risinho meio acanhado, a mãe:

- Ai, meu filho, nem sempre consigo entender bem o que fala. Mas eu compreendo. Podemos ir?

         - Guimarães Rosa levanta-se de cadeira de um pulo. Beija a testa de dona Francisco carinhosamente, enquanto ela apertava de leve um de seus braços.

- Vamos, filho. Visitar túmulos nesse dia é pagar, com efeito, um compromisso feito a nossos familiares passados, lembrar-se daqueles que o coração não esquece. Sempre foi assim, filho. É lei divina.

         - Então passa da hora de encarar a velha estradinha.  

- Sim, sim. Pegue logo suas coisas que Florduardo está que resmunga lá fora.

 

 

                *  Nota: em Belo Horizonte, o escritor João Guimarães Rosa morava  na rua Leopoldina, 415. Fordinho era cognome do automóvel Ford T.

               

**  FBN© - 2012 – FINADOS ROSEANO - Categoria: Conto/Realismo Mágico. Autor: Welington Almeida Pinto – www.fantasticorealismo.blogspot.com  Link: http://fantasticorealismo.blogspot.com.br/2012/06/blog-post_4984.html


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