sexta-feira, 1 de junho de 2012

* O ABADE TRAVESTIDO


*




Welington Almeida Pinto

 




Pedro Nava retira da carteira mais um cigarro e acende. Depois da primeira tragada, expande no rosto um sorriso maroto e, num estalar dos dedos, chama a atenção de um garçom parado no balcão, que logo se aproxima de sua mesa no salão do Café Estrela.

- Epitácio, tudo bem?

- Tudo, Doutor. O pedido de sempre?

- Não, não. Por favor, me serve uma dose reforçada de Kummel.

- Animado, hein? – interfere Drummond, sentado ao lado.

- Epitácio, com duas pedrinhas de gelo, viu?

- Sim, senhor.

E virando-se para o amigo.

- Cadê o Agenor?

- Ficou de passar mais tarde. Pelas nove.

- Ótimo. Enquanto ele não vem lhe conto algo fabuloso que li hoje num pasquim nefelibático, vindo de Paris. Diverti muito. Interessa?

- Claro, sou todo ouvido – dispõe o poeta, curioso.

- Estampa uma notícia em que revela a história de um religioso nos moldes de Don Juan. Acredita?

- Ora Nava, se for lorota, não. Agradeço.

- Não é não. De morrer de rir.

- De quem você quer falar?

- De um abade francês que, como se fosse a manifestação terrestre do diabo, viveu fantásticas histórias de amor na sua desenfreada juventude. Galante mancebo, o padreco disfarçava-se de mulher para viver pervertidas conquistas femininas em Paris onde, como contas do rosário, muitas damas deram-lhe a licença para orar em seu secreto santuário.

Drummond admirado:

- Ah!... Deve ser mais um personagem imaginário de algum escritor francês de segunda ou terceira classe.

- Não é não. De carne e osso. Há relatos preservados em “L’ Enfer de la Biliothèque Nationalle, Eros au Secret”. Já ouviu dizer?

- Nunca.

- Faz parte de uma coleção de livros imorais guardada, a sete chaves, na Biblioteca Nacional da França, desde o século XIX, por ordem de Napoleão Bonaparte.

- Nunca li nada a respeito.

- O religioso tinha o desejo sexual como fio condutor da existência. Como disse, seu negócio era se vestir de senhora para ganhar a confiança das mulheres da corte. Bom de papo, ele era mestre em seduzir as francesinhas com a promessa de compartilhar “segredinhos femininos” na alcova – conta Nava.

- Meu Deus!

- Que cara é essa, Drummond?

- Difícil de acreditar.

- Bico fino, o carinho!... Bom de lábia, ele escolhia suas presas pelo aspecto da pele, pelo brilho dos cabelos e, consequentemente, pela posição social.

- Sério?

- Sério.

- Ó mon Dieu! – exclama Drummond.

- Dizem que esse leal e devasso representante de “São Príapo” doutrinava suas discípulas para serem mais abertas e depravadas com seus esposos na cama, garantindo fogo constante ao amor. Pois delas era o talento de não permitir que a relação ficasse morna ou caísse na estagnação. E, ao contrário do que pode parecer, depois das aulas teóricas, o abade convencia as fieis esposas ao exercício das lições práticas, apimentadamente, surpreendentes e cheias de fantasias. Inovar era preciso.

- Caracas!

- Nada mais, nada menos do que, ao vivo e a cores, o teste da percepção pelos sentidos. Doutrinava o padre, através da homilia de um erotismo romântico, tudo que o casal precisava para viver um casamento feliz para sempre. Muito esperto o ladino, não?

- Quando foi isso?

- Ele viveu de 1644 a 1724. Não é à toa que o mocinho recebeu o apelido de Kama Sutra católico.

- Curuis credo!

Nava em tom recitado:

- Por baixo do seu ar submisso e respeitoso de clérigo, escondia-se uma dissimulação diabólica de Don Juan. Ninguém melhor do que um padre para se aproximar sorrateiramente de uma delicada fêmea e dar uma mordida no seu pezinho,  como bem diz Tchekhov num dos seus contos ao descrever um cão sardento.

- Ah, essa é boa!

- Conheço gente que é assim também, doido por um rabo de saia. Não é poeta Drummond?

- Não sei, conhece?

- O sagrado, meu amigo, além desse e de outros casos, vem conquistando cadeira cativa no mundo da concupiscência sexual em todos os tempos, em todo o mundo.

- Abomino. Abomino.

- Paris continua linda e fascinante, como sempre foi. Com mais essa história, a Cidade Luz coloca em evidência os bastidores da Igreja Católica e sua luta secular contra o demônio, que não poupa nem os servos de Deus.

- Arre!... Provavelmente esse tal foi expulso da Congregação por insubordinação mental e sexual.

- Disso ninguém tem notícia.

- A verdade liberta, a mentira escraviza!...  - assevera Drummond. - Sem dúvida, garanto que ele pena nas fontes ardentes do inferno de Dante.

Pedro bebe toma o resto da dose de Kummel. Chama de novo o garçom e pede uma dose dupla de conhaque francês. Carlos, indiferente, retira do bolso o relógio e confere as horas. Logo diz ao garçom que apetecia tomar Guaraná Champagne Antarctica antes de sair.

 


 

* FBN© 2011 * O ABADE TRAVESTIDO - Categoria: Crônica estendida/Realismo Mágico -  Autor: Welington Almeida Pinto - Texto original em português: http://www.wattpad.com/20583949-o-abade-travestido -  Ilust.: Imagens Internet  – Link: http://fantasticorealismo.blogspot.com.br/2012/06/blog-post_174.html
 
 
 

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