*
Welington
Almeida Pinto
-
Epitácio, tudo bem?
- Tudo,
Doutor. O pedido de sempre?
- Não,
não. Por favor, me serve uma dose reforçada de Kummel.
- Animado,
hein? – interfere Drummond, sentado ao lado.
-
Epitácio, com duas pedrinhas de gelo, viu?
- Sim,
senhor.
E
virando-se para o amigo.
- Cadê o
Agenor?
- Ficou de
passar mais tarde. Pelas nove.
- Ótimo.
Enquanto ele não vem lhe conto algo fabuloso que li hoje num pasquim
nefelibático, vindo de Paris. Diverti muito. Interessa?
- Claro, sou
todo ouvido – dispõe o poeta, curioso.
- Estampa
uma notícia em que revela a história de um religioso nos moldes de Don Juan.
Acredita?
- Ora
Nava, se for lorota, não. Agradeço.
- Não é
não. De morrer de rir.
- De quem
você quer falar?
- De um
abade francês que, como se fosse a manifestação terrestre do diabo, viveu
fantásticas histórias de amor na sua desenfreada juventude. Galante mancebo, o
padreco disfarçava-se de mulher para viver pervertidas conquistas femininas em
Paris onde, como contas do rosário, muitas damas deram-lhe a licença para orar em seu secreto santuário.
Drummond
admirado:
- Ah!...
Deve ser mais um personagem imaginário de algum escritor francês de segunda ou
terceira classe.
- Não é
não. De carne e osso. Há relatos preservados em “L’ Enfer de la Biliothèque
Nationalle, Eros au Secret”. Já ouviu dizer?
- Nunca.
- Faz
parte de uma coleção de livros imorais guardada, a sete chaves, na Biblioteca
Nacional da França, desde o século XIX, por ordem de Napoleão Bonaparte.
- Nunca li
nada a respeito.
- O
religioso tinha o desejo sexual como fio condutor da existência. Como disse,
seu negócio era se vestir de senhora para ganhar a confiança das mulheres da
corte. Bom de papo, ele era mestre em seduzir as francesinhas com a promessa de
compartilhar “segredinhos femininos” na alcova – conta Nava.
- Meu
Deus!
- Que cara
é essa, Drummond?
- Difícil
de acreditar.
- Bico
fino, o carinho!... Bom de lábia, ele escolhia suas presas pelo aspecto da
pele, pelo brilho dos cabelos e, consequentemente, pela posição social.
- Sério?
- Sério.
- Ó mon Dieu! – exclama Drummond.
- Dizem que esse leal e devasso
representante de “São Príapo” doutrinava suas discípulas para serem mais
abertas e depravadas com seus esposos na cama, garantindo fogo constante ao
amor. Pois delas era o talento de não permitir que a relação ficasse morna ou
caísse na estagnação. E, ao contrário do que pode parecer, depois das aulas
teóricas, o abade convencia as fieis esposas ao exercício das lições práticas, apimentadamente,
surpreendentes e cheias de fantasias. Inovar era preciso.
- Caracas!
- Nada mais, nada menos do que, ao vivo e
a cores, o teste da percepção pelos sentidos. Doutrinava o padre, através da homilia de
um erotismo romântico, tudo que o casal precisava para viver um
casamento feliz para sempre. Muito
esperto o ladino, não?
- Quando
foi isso?
- Ele
viveu de 1644 a 1724. Não é à toa que o mocinho recebeu o apelido de Kama Sutra
católico.
- Curuis
credo!
Nava em
tom recitado:
- Por
baixo do seu ar submisso e respeitoso de clérigo, escondia-se uma dissimulação
diabólica de Don Juan. Ninguém melhor do que um padre para se aproximar
sorrateiramente de uma delicada fêmea e dar uma mordida no seu pezinho, como bem diz Tchekhov num dos seus contos ao
descrever um cão sardento.
- Ah, essa
é boa!
- Conheço gente que é assim também, doido por um rabo de saia. Não é poeta
Drummond?
- Não sei, conhece?
- O
sagrado, meu amigo, além desse e de outros casos, vem conquistando cadeira
cativa no mundo da concupiscência sexual em todos os tempos, em todo o mundo.
- Abomino.
Abomino.
- Paris
continua linda e fascinante, como sempre foi. Com mais essa história, a Cidade
Luz coloca em evidência os bastidores da Igreja Católica e sua luta secular
contra o demônio, que não poupa nem os servos de Deus.
- Arre!...
Provavelmente esse tal foi expulso da Congregação por insubordinação mental e
sexual.
- Disso
ninguém tem notícia.
- A
verdade liberta, a mentira escraviza!...
- assevera Drummond. - Sem dúvida, garanto que ele pena nas fontes
ardentes do inferno de Dante.
Pedro bebe
toma o resto da dose de Kummel. Chama de novo o garçom e pede uma dose dupla de
conhaque francês. Carlos, indiferente, retira do bolso o relógio e confere as
horas. Logo diz ao garçom que apetecia tomar Guaraná Champagne Antarctica antes
de sair.
* FBN© 2011 * O
ABADE TRAVESTIDO - Categoria: Crônica
estendida/Realismo Mágico - Autor:
Welington Almeida Pinto - Texto original
em português: http://www.wattpad.com/20583949-o-abade-travestido - Ilust.: Imagens Internet – Link: http://fantasticorealismo.blogspot.com.br/2012/06/blog-post_174.html
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